Solenidade do Sagrado Coração de Jesus – 27 de junho de 2025
Dirijo a você o convite a contemplar o Sagrado Coração de Jesus! Precisamos de coração! Precisamos do Coração do Senhor! E Ele nos chama a si, porque nos quer associar às intimidades de seu coração, porque nos quer revelar os segredos do Pai e porque nos quer enviar em seu nome, para sermos extensões de seu amor. Talvez esse convite possa soar a muitos como um devocionismo sentimental, intimista. O esvaziamento semântico do secularismo, deprecia o sentido do coração. Por isso, não é demais fazer uma breve retomada do sentido bíblico e teológico do coração na vida cristã.
Para a fé cristã, em geral, o coração é a profundidade do ser enquanto unidade profunda da alma e do corpo. Não se trata apenas de uma metáfora, mas de um símbolo real, na medida em que é percebido como o primeiro órgão a reagir aos estados psicossomáticos no âmbito central e mais profundo de uma pessoa. O coração é o “lugar” onde a pessoa decide-se ou não por Deus (Cf.: Pompei, Alfonso, “Coração”, in Borriello, L. – Caruana, E. – Del Genio, M.R. – Suffi, N. (dirs.), Dicionário de Mística, São Paulo, Paulus, 2003, pp. 273ss). Existe uma clara noção de espacialidade do coração. Fala-se de sua profundidade, por exemplo, e de caminhos do coração. Além disso, situado no centro dos pulmões ele é movimento contínuo que impulsiona o sangue oxigenado para todas as demais partes do corpo. O coração está diretamente relacionado ao sopro divino gerador da vida e ao sangue que, na noção bíblica, é o princípio vital. Nesse sentido, é no coração que o ser humano se encontra intimamente com Deus, seu Criador, unindo-se a Ele. O coração é parte fundamental do “território” sagrado que é o corpo humano que, por sua vez, unido à alma, forma a unidade do ser humano criado à imagem e semelhança de Deus (Cf.: Miranda, Evaristo E. de, Corpo. Território do Sagrado, São Paulo, Loyola, 2000, pp.151-156).
De fato, o Catecismo da Igreja Católica, na quarta parte, em que trata da oração cristão, assim define o coração, como “lugar” por excelência de onde brota a oração humana: “O coração é a casa em que estou, onde moro (segundo a expressão semítica ou bíblica: aonde eu ‘desço’). Ele é o nosso centro escondido, inatingível pela razão e por outra pessoa; só o Espírito de Deus pode sondá-lo e conhecê-lo. Ele é o lugar da decisão, no mais profundo de nossas tendências psíquicas. É o lugar da verdade, onde escolhemos a vida ou a morte. É o lugar do encontro, pois, à imagem de Deus, vivemos em relação; é o lugar da Aliança” (CIC, n.2563).
Chama-nos a atenção como a antropologia bíblica sintetiza a unidade do ser humano justamente no coração, que é seu centro e sua profundidade, que integra a sensibilidade, a inteligência, a memória e a vontade, que integra corpo e alma. Embora a tradição semítica relacione as emoções e os sentimentos a outros órgãos do corpo que ocupam o ventre, ou seja, às entranhas, o coração é a sede do discernimento, da inteligência intuitiva e discursiva (Cf.: Vauchez, André, Cristianismo. Dicionário dos tempos, dos lugares e das figuras, Rio de Janeiro, Forense, 2013, p.96). Ele é o órgão que, pela operação do discernimento mais secreto, busca a significação das emoções experimentadas. “Órgão central do sistema da irrigação sanguínea, desde muito cedo considerado a sede do princípio vital e das faculdades afetivas, também na linguagem bíblica significa condescendência, desejo, amor. É a sede do amor e do ódio, da condescendência e da rejeição, do desejo e da recusa. Porque pode pensar e decidir (Cf.: Ex 36,26; Sl 51,19), pode ser colocado em paralelo com o espírito” (Heinz-Mohr, Gerd, Dicionário dos símbolos. Imagens e sinais da arte cristã, São Paulo, Paulus, 1994, p.105). Assim, a linguagem bíblica difere da linguagem moderna ao considerar o coração como sede da inteligência (Cf.: Mt 12,34; Mc 7,21; 11,23; Jo 12,40; At 7,23; 28,27) e da decisão (At 11,23; 2Cor 9,7) e não símbolo de sentimentalismo e fraqueza. O coração é fonte do pensamento, do desejo e dos atos. Sabedoria, discernimento e conhecimento estão no coração (Mckenzie, John L., Dicionário Bíblico, São Paulo, Paulus, 1983, pp. 183-184).
Assim, a contemplação do Coração de Jesus é itinerário em direção à verdade de sua pessoa humano-divina, revelada a nós como máxima expressão de amor. Jesus, o Filho de Deus feito homem, assumiu nossa condição humana, fazendo-se igual a nós em tudo, exceto no pecado, fez-se coração, decidiu-se por nós, fez-se coração, para nos reconduzir à fonte da vida e da salvação, o Pai. Desse modo, o convite à contemplação do Coração de Jesus, é convite para um encontro de coração a coração. Somente esse encontro pode nos transformar, desde o mais profundo de nossa existência, no diálogo e na entrega total. São João Newman assumiu como grande lema de vida: “Cor ad cor loquitur!” O coração fala ao coração!
Ao descansarmos nosso olhar na imagem do Coração de Jesus, como nos é apresentada pela iconografia, vemos um coração que é visível em um peito aberto. Além disso, esse coração encontra-se ferido: envolto por uma coroa de espinhos, ferido por uma lança, atravessado por uma cruz. Jesus decidiu dar a sua vida por nós, em nosso lugar, para que pudéssemos recuperar a graça da comunhão com Deus pelo perdão de nossos pecados. Suas dores de amor estão estampadas desde o íntimo de sua pessoa, em seu coração humano-divino. Ele sentiu nossos mais genuínos afetos ao chorar conosco e por nós, ao manifestar compaixão diante de nossas dores, ao estreitar conosco um vínculo tão forte a ponto de não sermos mais servos, mas seus amigos. Mas o seu amor por nós, para além dos afetos humanos, é um amor divino, que transcende a provisoriedade dos vínculos deste mundo, para nos lançar na felicidade da vida eterna. Justamente por isso, se continuamos a contemplar esse coração, percebemos que ele é todo abrasado por chamas que representam um amor sublime. E dele brotam raios de intensa luz, de tal modo a antevermos, nele, a glória da vida futura. Eis o coração que tanto nos amou e nos ama! Eis o coração que nos conserva e nos introduz nas misteriosas sendas para a eternidade!
Na imagem do Sagrado Coração de Nosso Senhor Jesus Cristo, está sintetizada toda a verdade a respeito de sua Pessoa, Filho de Deus feito homem, que nos salvou pelo seu infinito amor misericordioso. Não podemos passar diante desse coração e permanecermos indiferentes. Ele deseja que lhe entreguemos o nosso coração. Essa entrega pode levar a vida inteira e pode nos custar tudo. O Senhor espera de nós um coração agradecido e capaz de retribuir-lhe amor. Como esquecer o lema de vida da Carmelita Santa Teresinha do Menino Jesus? Amor, com amor, se paga! Num mundo de friezas humanas, de indiferentismo religioso, de secularismo avassalador, busquemos retribuir ao Coração de Jesus, o amor com que Ele nos ama. Será sua grande alegria nossos mais pequeninos gestos de reconhecimento e gratidão. Amemos Nosso Senhor, por aqueles que não o amam, peçamos-lhe perdão por aqueles que não se arrependem de seus pecados, reparemos tantas ofensas e ultrajes ao seu amor. Todos somos chamados a esse coração, para retribuir-lhe as infinitas graças de amor e misericórdia!
Para mim, contemplar o Coração de Jesus é fortalecer o dom da vocação sacerdotal e percorrer um caminho de esperança; esperança na realização de suas promessas. São João Maria Vianey diz que nosso sacerdócio se situa nesse mistério: “O sacerdócio é o amor do Coração de Jesus” (Nodet, Bernard (cur.), Le Curé d’Ars. Sa pensée – son cœur, Le Puy, Xavier Mappus, 1966, pág. 98. Cf. também: CIC, n. 1589). Estar com o Senhor nos faz, portanto, autênticos, capazes de um coração reto, íntegro, puro, capaz de honrar tamanho amor que nos foi dado por ele de modo livre, gratuito e total. O encontro com o Coração do Senhor, nos faz, em síntese, santos. Partindo da Eucaristia cotidiana, passando pela oração pessoal, pela catequese, pela pregação da Palavra e pelo governo pastoral, em tudo é a verdade e o amor desse coração que deve nos preencher, nos encantar e nos mover. Não se sustenta uma vida de duplicidade e vazia de amor. No contexto social e cultural em que a mentira adquire status de oficialidade, nosso exercício ministerial busca primar pela coerência, honestidade, verdade, no amor. No Coração do Senhor a verdade de nossa pessoa – também a verdade de nossos sofrimentos – encontra amparo e alento. O papa Bento XVI fazia alusão à frase de São João Maria Vianey, na proclamação do Ano Sacerdotal, ocorrido em 2009, nos seguintes termos: “Esta tocante afirmação permite-nos, antes de mais nada, evocar com ternura e gratidão o dom imenso que são os sacerdotes não só para a Igreja, mas também para a própria humanidade. Penso em todos os presbíteros que propõem, humilde e quotidianamente, aos fiéis cristãos e ao mundo inteiro as palavras e os gestos de Cristo, procurando aderir a Ele com os pensamentos, a vontade, os sentimentos e o estilo de toda a sua existência. Como não sublinhar as suas fadigas apostólicas, o seu serviço incansável e escondido, a sua caridade tendencialmente universal? E que dizer da fidelidade corajosa de tantos sacerdotes que, não obstante dificuldades e incompreensões, continuam fiéis à sua vocação: a de ‘amigos de Cristo’, por Ele de modo particular chamados, escolhidos e enviados? (…) Mas a expressão utilizada pelo Santo Cura d’Ars evoca também o Coração traspassado de Cristo com a coroa de espinhos que O envolve. E isto leva o pensamento a deter-se nas inumeráveis situações de sofrimento em que se encontram imersos muitos sacerdotes, ou porque participantes da experiência humana da dor na multiplicidade das suas manifestações, ou porque incompreendidos pelos próprios destinatários do seu ministério: como não recordar tantos sacerdotes ofendidos na sua dignidade, impedidos na sua missão e, às vezes, mesmo perseguidos até ao supremo testemunho do sangue?” (Bento XVI, Carta para a proclamação do Ano Sacerdotal, 2009).
E para você, em sua vocação, o que o Sagrado Coração de Jesus diz? Contemple, descanse nele, entregue-se a ele. “Vinde a mim! Eu vos aliviarei. Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração” (Mt 11, 28-30). Que este Sagrado Coração faça de você um peregrino de esperança!
Padre Rafael Capelato
Pároco da Paróquia Bom Jesus de Piraporinha
Sagrad